Foi uma tragédia que matou milhares de animais, contaminou rios e praias, destruiu economias locais e deixou comunidades ribeirinhas à míngua, sem que um único responsável tenha sido punido até hoje.
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Dez anos após o naufrágio do navio libanês Haidar, que afundou no porto de Vila do Conde, em Barcarena, em 2015, carregado com quase 5 mil bois vivos destinados ao Oriente Médio e centenas de milhares de litros de óleo, o Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) julga nesta terça-feira (25) o caso ambiental mais emblemático da história do estado. Foi uma tragédia que matou milhares de animais, contaminou rios e praias, destruiu economias locais e deixou comunidades ribeirinhas à míngua, sem que um único responsável tenha sido punido até hoje.
O navio, um símbolo enferrujado de negligência, permanece submerso no mesmo local, vazando memórias tóxicas em águas amazônicas, enquanto o mundo volta os olhos para a região por causa da COP30 em Belém. O desastre ocorreu em 6 de outubro de 2015, quando o Haidar, operado pela empresa libanesa Minerva Foods – maior exportadora brasileira de gado vivo na época –, tombou no cais do porto durante o embarque, liberando óleo e causando a morte por afogamento de cerca de 4.800 bois. O vazamento poluiu praias, rios e igarapés, com o mau cheiro da decomposição de toneladas de carga orgânica afetando moradores, que relataram náuseas e mal-estar.
Comunidades pesqueiras de Barcarena, Abaetetuba e municípios vizinhos viram a pesca entrar em colapso, o turismo evaporar e o comércio local se tornar um “território fantasma”. Dez anos depois, o impacto persiste: o navio não foi removido, apesar de promessas em 2020 de que seria retirado, e famílias ainda lutam por indenizações adequadas, consideradas “irrisórias” pelas vítimas.
O custo inicial estimado do acidente foi de R$ 800 milhões, cobertos por seguros internacionais, mas os danos ambientais e sociais vão muito além, incluindo contaminação por óleo que atraiu até tubarões para as águas sangrentas.
Injustiça ambiental e social
O portal Ver-o-Fato, que produziu matérias exclusivas à época, revelou detalhes cruciais, como o histórico problemático da Minerva Foods – envolvida em outro incidente em 2012, quando 2.700 bois morreram asfixiados no navio Gracia del Mar – e a adaptação inadequada do Haidar, originalmente um cargueiro de contêineres, para transporte de animais vivos.
Essas reportagens destacaram o caos imediato, com o porto interditado e um gabinete de crise formado pela Marinha, Ibama e outros órgãos, que planejou a remoção do navio com balsas e guindastes, mas falhou em executá-la integralmente. Em pleno ano de 2025, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) ainda discute melhorias na segurança do porto de Vila do Conde, como protocolos para transporte de carga viva, mas sem avanços concretos na retirada da embarcação.
O Ministério Público Federal (MPF), em sua página dedicada ao “Caso Haidar”, lista ações judiciais pedindo indenizações de R$ 71 milhões e aperfeiçoamentos no embarque de gado, mas o processo tramita lentamente na 9ª Vara Federal de Belém.
Essa tragédia inusitada expõe camadas profundas de injustiça ambiental na Amazônia: não é apenas um acidente isolado, mas um evento contínuo de negligência institucional, onde a exportação de gado vivo – prática criticada por ativistas por crueldade animal e riscos ambientais – colide com a vulnerabilidade de comunidades tradicionais.
Julgamento sob holofotes globais
O afogamento em massa de 5 mil bois, destinados a mercados no Líbano e Egito, simboliza a banalidade do sofrimento animal em nome do lucro, enquanto ribeirinhos perdem seu sustento sem reparação. No TJPA, o julgamento testa precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como o Tema 680, que presume danos morais para pescadores artesanais, reconhece danos ambientais por ricochete e impõe responsabilidade civil objetiva e solidária.
O Ministério Público Estadual (MPPA) defende a reforma da sentença de primeira instância, com indenizações imediatas de 24 meses de danos materiais por pescador e morais in re ipsa (expressão em latim jurídica que significa que um evento, por si só, é prova de um dano moral ou de outra consequência legal, dispensando a necessidade de provas adicionais). O contexto é de tensão máxima: com a COP30 ampliando o escrutínio global sobre a justiça ambiental na Amazônia, o caso ganha repercussão nacional.
Há debates nos bastidores sobre a influência do ministro do STJ Luis Felipe Salomão, formulador de jurisprudência ambiental, e o envolvimento do escritório de seu filho no processo – fato que, sem irregularidades aparentes, eleva a demanda por transparência. Movimentos sociais e ambientais aguardam uma decisão que possa virar marco, definindo padrões para futuros desastres na região, como os recorrentes vazamentos em Barcarena.
Em última análise, o Haidar não é só um navio afundado; é um monumento à impunidade que clama por justiça. Após uma década de abandono, essa sentença pode finalmente iniciar a reparação ou perpetuar o ciclo de descaso, sob os holofotes internacionais da luta climática. (Erika Marinho-Estagiária, com Ver o Fato)

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